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Conflito de interesses: tratamento legal na Previdência Complementar Fechada

Atualizado: 31 de jul. de 2023

Aparecida Pagliarini


Não tenho notícia de que o conflito de interesses tenha sido objeto de avaliação ou

tratamento por parte da PREVIC, órgão encarregado pela supervisão e fiscalização

das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), ao contrário do que

ocorre no âmbito do mercado de capitais, sob supervisão da Comissão de Valores

Mobiliários (CVM). Penso que, na falta de uma concepção que ofereça uma análise e

interpretação objetivas do que seja o conflito de interesses entre os administradores e

a EFPC, a PREVIC não tem encontrado aplicação das disposições da Resolução

CGPC nº 13 vigentes desde 2004 identificando situações de conflito se e quando

ocorrem. Há 18 anos, portanto. De outro lado, vale lembrar, que não será sempre fácil

essa identificação, mesmo com as regras editadas posteriormente para os

investimentos das reservas dos planos.


Buscando na Lei nº 6.404/1076 [1] que vou usar subsidiariamente, vemos que o conflito de interesses pode se dar pelo abuso do direito de voto do acionista e pelos

administradores da companhia. A primeira situação vem tratada no art. 115 e a

segunda no artigo 156, na seção que cuida dos deveres e reponsabilidades, com a

seguinte vedação aos membros do conselho de administração e da diretoria (os

administradores):


Art. 156. É vedado ao administrador intervir em qualquer

operação social em que tiver interesse conflitante com o

da companhia, bem como na deliberação que a respeito

tomarem os demais administradores, cumprindo

cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em

ata do Conselho de Administração ou da diretoria, a

natureza e a extensão do seu interesse.

§ 1º. Ainda que observado o disposto neste artigo, o

administrador somente pode contratar com a companhia

em condições razoáveis ou equitativas, idênticas às que

prevalecem no mercado ou em que a companhia

contrataria com terceiros.

§ 2º. O negócio contratado com infração do disposto no §

1º é anulável, e o administrador interessado será

obrigado a transferir para a companhia as vantagens que

dele tiver auferido.


Pois bem, decorrido tempo desde a edição da Resolução CGPC nº 13 que colocou o

conflito de interesses como risco a ser controlado [2] , a partir da Resolução CMN nª

4661, em 2018, lemos que


Art. 12. A EFPC deve avaliar a capacidade técnica e

potenciais conflitos de interesse de seus prestadores de

serviços e das pessoas que participam do processo

decisório, inclusive por meio de assessoramento.

Parágrafo único. O conflito de interesse será configurado

em quaisquer situações em que possam ser identificadas

ações que não estejam alinhadas aos objetivos do plano

administrado pela EFPC independentemente de obtenção

de vantagem para si ou para outrem, da qual resulte ou

não prejuízo.


O mesmo artigo 12 foi transcrito na Resolução CMN nº 4994, que entrou em vigor

neste ano de 2022, e me faz continuar vendo algumas outras dificuldades:


1. “A EFPC deve avaliar”. A EFPC é uma pessoa jurídica que age através das

pessoas naturais que são seus administradores e que a representam. Com

isso, leio o início do artigo como “os administradores da EFPC devem avaliar”,

significando que as atitudes e as decisões tomadas pelo conselho deliberativo

e pela diretoria devem ser monitoradas: daquele pelo conselho fiscal, desta,

pelo conselho deliberativo e com a fiscalização do conselho fiscal;

2. “deve avaliar a capacidade técnica e potenciais conflitos de interesse de seus

prestadores de serviços”. Quanto à capacidade técnica não é difícil avaliar,

mas os interesses podem ser de várias ordens e deve ser invocado no plural.

O interesse nunca poderá ser usado no singular, uma vez que é preciso que

haja mais de um interesse para que conflitem. Assim, melhor seria que a

expressão adotada no texto fosse “conflitos de interesses” ou “interesses

conflitantes” querendo dizer que os interesses em conflito seriam entre o

interesse do prestador de serviço e o da EFPC e dos planos por ela operados;

3. “de seus prestadores de serviços e das pessoas que participam do processo

decisório”. A redação também não favorece. Os conflitos de interesses a que

se refere a norma são das duas classes de pessoas ou entre elas? Parece-me

que a interpretação é de que os interesses conflitantes poderão se dar entre

prestadores de serviços e as pessoas que participam do processo decisório,

sempre em desfavor (não significando necessariamente vantagem de qualquer

espécie para as partes, de acordo com a redação) da EFPC e dos planos por

ela administrados;

4. “pessoas que participam do processo decisório”. Parece-me, aqui, que a

responsabilidade deverá ser apurada com os §§ 1º e 2º do artigo 4º da mesma

Resolução [3] , observando que a “medida de suas atribuições”, como diz o texto, está na Lei e no estatuto, em regimentos internos de cada entidade e que

essas atribuições, ainda que delegadas (lembrando que as funções dos

administradores são indelegáveis como regra geral) no mínimo resultam em

responsabilidade solidária;

5. “inclusive por meio de assessoramento”. Continua me parecendo que a

redação apresenta outra dificuldade que pode levar a diversas interpretações,

algumas inadequadas: primeiro, porque quem assessora não toma decisão,

mas assessora quem vai decidir (se decidisse, não seria órgão de

assessoramento, mas deliberativo ou executivo); segundo, será preciso apurar

“a medida das suas atribuições”, como a Resolução prevê, avaliando o

conteúdo de cada hipótese; terceiro, se se tratar de assessoramento prestado

por terceiros (os “prestadores de serviços”) será necessário avaliar cada um

dos contratos firmados entre eles e a EFPC quanto ao objeto, cláusulas de

responsabilidades, dentre outras coisas.


O parágrafo único do mesmo artigo 12 pode trazer outras incertezas dado o grau

de subjetividade da sua interpretação e, consequentemente, aplicação. Há um

alargamento na aplicação de situações conflitantes, sem que a Resolução diga o

que é conflito de interesses. Não há definição:


1. “quaisquer situações em que possam ser identificadas ações que não estejam

alinhadas aos objetivos do plano administrado pela EFPC”. De um lado, pode

parecer que omissões estão excluídas da hipótese, o que não seria adequado.

De outro, admitir quaisquer situações, pressupondo aí incluídos negócios

jurídicos de caráter não patrimonial, também não me parece adequado [4] , uma

vez que a incompatibilidade de interesses deve apontar para algum prejuízo

para a EFPC ou para os planos por ela operados, ainda que potencialmente;

2. “independentemente de obtenção de vantagem para si ou para outrem” cria

novas dúvidas. Vantagem de que ordem? Minha interpretação é de que essa

“vantagem” haverá de ser sempre de valor que possa ser apurado e

mensurado objetivamente, de acordo com políticas estabelecidas pelo

conselho deliberativo [5] ;

3. “da qual resulte ou não prejuízo”. Parece-me que aqui seria prejuízo para a

EFPC (de imagem, por exemplo) e para os planos por ela administrados,

quando seria então necessário fazer uma indicação clara sobre qual o tipo de

ameaça a qual o plano (ou planos) de benefícios estaria exposto, sempre

considerando um prejuízo mensurável, ainda que potencialmente, repito.


Porém, se é certo que há dificuldade pelas incertezas, parece-me que a redação do

dispositivo, de forma aberta, leva a concluir que fica garantida a análise de cada

hipótese de forma criteriosa e circunstanciada para a melhor avaliação pelo colegiado,

seja ele o conselho deliberativo, o conselho fiscal na sua análise de riscos ou a

diretoria. Resta, apesar disso, dúvida de maior importância, que vai além do conflito e

tem reflexos no dever de lealdade do administrador: se o conflitado deve declarar o

seu conflito abstendo-se de votar. A situação não está disciplinada nem na Resolução CGPC nº 13/2004, nem na Resolução CMN nº 4994/2022 parecendo esta cuidar do

conflito formal tão somente.


O voto proferido pelo administrador nos órgãos colegiados (até porque ninguém vota

quando está sozinho) é chamado pela doutrina de dever-função. Realmente, em razão

da função que exerce, o administrador se obriga a tomar decisões (preparadas,

estruturadas, fundamentadas) externando sua manifestação para construir a decisão

coletiva que vai obrigar a sociedade (tenha ela finalidade lucrativa ou não), que vai

expressar a vontade social. Essa manifestação individual- o voto – que se realiza em

razão de um interesse, não pode ser incompatível com o interesse da sociedade e o

contrário também é verdadeiro: se a vontade individual não conflitar com o interesse

da sociedade, não haverá conflito.


Assim, ainda que no ambiente da previdência complementar fechada a administração

da EFPC pelo conselho deliberativo seja exercida por membros indicados pelo

patrocinador e eleitos pelos participantes e assistidos, como ocorre no controle

exercido pelo conselho fiscal, em nenhuma hipótese poder-se-á admitir que interesses

pessoais sejam colidentes ou incompatíveis com o interesse da entidade e dos planos

por ela operados, gerando dano ou prejuízo.


Pois bem. Se não há registro de que o órgão encarregado pela fiscalização das EFPC

tenha identificado situações de conflito de interesses, como a Comissão de Valores

Mobiliários – CVM tem tratado da questão na aplicação do art. 156 da LSA que trata

do interesse conflitante do administrador da companhia e que, subsidiariamente, pode

nos auxiliar?


[1] Lei das SA [2] Arts. 3º; 4º, § 3º, e 10

[3] Art. 4º

§ 1º São considerados responsáveis pelo cumprimento do disposto nesta Resolução, por ação ou omissão, na medida de suas atribuições, as pessoas que participam do processo de análise, de assessoramento e decisório sobre a aplicação dos recursos dos planos da EFPC.

§ 2º Incluem-se no rol de pessoas previstas no § 1º, na medida de suas atribuições, os membros de conselhos estatutários da EFPC, os procuradores com poderes de gestão, os membros do comitê de investimentos, os consultores e outros profissionais que participem do processo de análise, de assessoramento e decisório sobre a aplicação dos recursos dos planos da entidade, diretamente ou por intermédio de pessoa jurídica contratada.

[4] Aqui fica demonstrada a importância de o conselho deliberativo estabelecer e aprovar uma adequada política de relacionamento

[5] Inclusive quanto à lavagem de dinheiro, suborno ou corrupção

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